Pondo as coisas em Pratt(s) limpo(s): Corto e grosso, por João Marques

19-05-2015 19:46

 

A notícia está a agitar as águas dos mares da 9a Arte: um novo álbum do Corto Maltese prepara-se para levantar ferro e soltar amarras.

Confesso que o primeiro pensamento que permeou o meu cérebro foi: " Então...???... Mas o Pratt já morreu...". Numa cambiante deliciosa e perniciosamente displicente, o meu subconsciente foi muito claro: sem Pratt não há Corto!!! (Semi) refeito do choque, os meus olhos pousaram sobre os nomes dos autores: Canalèz e Pellejero. Ora, Canalèz... Blacksad.

No entanto, uma virtude tem de se reconhecer ao Canalèz (provavelmente, até mais que uma!): o argumento de Blacksad, até agora, é competente. Com muito enfase no “até agora”… Apesar da abordagem ao género pulp noir que nos propõe não ser - de todo - refrescante, não deixa de prestar homenagem e beber dos cânones tradicionais do género. Digamos que o que falta em originalidade - na criação da ambiência - é compensado por uma história competente e uma narrativa fluída. E os cameos... Geniais!

Aliás, John Blacksad (aka John H. Blackmore) narra as suas histórias, acrescentando comentários cínicos acerca das maleitas que acometem o mundo que o rodeia. Azarado no amor, parece nunca conseguir manter uma relação duradoura, frequentemente devido a circunstâncias que escapam ao seu controlo. E isso só pode ser um bom prenúncio, para quem tem agora a tarefa de transmitir uma visão do mundo a la Corto Maltese.

Não é que seja fã de Blacksad. Nada. Para ser franco, a antropomorfização é um conceito que me enfada desde que me conheço. Não se trata sequer de gostar ou não de gatos. Nem de preferir, ou não, cães. O busílis da coisa é que me vem sempre à memória a imagética típica do countryside inglês, com os seus motivos de cães vestidos, sentados à mesa a tomar chá, como os humanos. Piroso até mais não. Aliás, um fenómeno com o devido, proporcional e tardio eco, no nosso país (e devidamente adaptado à fleuma portuguesa), patente nos clássicos quadros/posters da década de 80, com chimpanzés a adoptar todo o tipo de comportamento humano: a fumar charutos; a beber Sagres; à baliza; a jogar poker e vestidos de executivo (calças em baixo, incluídas), sentados na sanita. Recordo com particular vividez o chimpanzé-redactor-de-jornal (qual J. Jonah Jameson!) ao telefone, lápis atrás da orelha, nó de gravata lasso e charuto incluído…

E, pelo menos numa coisa, toda a comunidade bedéfila está de acordo: suceder a Pratt é uma tarefa incomensurável. Suceder a Pratt, em Corto Maltese, é um atrevimento. Uma ousadia, a raiar a heresia. Na minha opinião, no bom sentido. Diz-se que existe uma linha ténue que separa a ousadia e a coragem, da loucura. Neste momento, creio sermos unânimes que Canalès e Pellejero (El Silencio de Malka, Un Poco de Humo Azul) montaram a secretária e o estirador mesmo em cima dessa linha, qual fio de navalha afiada. Por debaixo, a grande maioria dos fãs entretém-se a espalhar uma poça de álcool etílico. 95 volumes.

Não tenho qualquer reserva em admitir que sou daqueles que se agarra às referências tradicionais. Com um professar quase a raiar o fundamentalismo. Algures entre o "bota-de-elástico" e o "Velho do Restelo". Com laivos de Statler & Waldorf, os dois num. Nem quando o Van Hamme escreveu Blake & Mortimer me animei por aí além... E o Van Hamme é dos meus escritores favoritos! A propósito, XIII sem Van Hamme não é a mesma coisa: a dupla Jigounov & Sente não me convence... Mas, antes Blake & Mortimer com Van Hamme do que XIII sem ele. Justiça seja feita.

Para mim, Asterix é Uderzo & Goscinny; Blake & Mortimer é Edgar P. Jacobs; Lucky Luke é Morris & Goscinny; Spirou é Franquin; etc.; etc; etc. Ora, Franquin não é o criador de Spirou. Nem tão pouco o seu primeiro desenhador/argumentista. Antes vêm Rob-Vel (criador), Lafnet e Jijé (que, aliás, criou o Fantásio). O que significa que... Há esperança! É raro, mas quem vem a seguir pode até acrescentar algo de (muito) válido.

Não tenho espaço (nem considero que possa ser interessante para quem me lê) para discorrer sobre o que adoro em Pratt. Prefiro debruçar-me sobre um par de pormenores que, na minha opinião, o tornam único. Em termos de traço, Pratt não obedece às regras clássicas das proporções e da disposição espacial. Convenhamos: Corto esta mais para o lado do pernilongo do que para o do Homem de Vitruvio ou do David... Ora, esta abordagem está longe de ser inocente: Corto não é moralmente perfeito (longe disso!). Porque haveria de o ser fisicamente?

Essa mesma ruptura com a percepção espacial e proporcional clássica, adoptada por Pratt, é fundamental para ilustrar graficamente as ambiências entre o surreal, o onírico e o delirante, que - não raras vezes - não andam arredadas das aventuras de Corto. Por outro lado, em termos de competência técnica, Pratt tem o condão de, usando o menor número de traços, desenhar os melhores sorrisos sardónicos que já vi. Desde Corto a Rasputine. Ora, por motivos óbvios, isso é crucial para a caracterização do marinheiro com a perspectiva mais cínica da vida (e da morte!) que conhecemos. E estranhamente (ou nem tanto!), para meu desapontamento, a nova capa não revela o rosto de Corto… Partilhará Pellejero da minha opinião, preferindo adiar a tarefa? Boa sorte… Uma coisa é garantida: uma história do Corto não o é sem um número mínimo dos típicos sorrisos e ar de desdém do marinheiro mais blasé de sempre. Do que já li, desenhado por Pellejero não creio que o seu traço tenha problemas ao adaptar-se ao traço de Pratt. Aliás, a nova capa é a prova disso. Não sei se é sugestão, mas, depois de já a ter (re)mirado dezenas de vezes seria capaz de jurar que foi desenhada pelo próprio punho do Criador. Mais ainda: voltando, agora, a folhear alguns trabalhos de Pellejero, não me parece descabido cogitar que o seu traço tenha sido influenciado (também) pelo trabalho de Pratt. Sugestão? Coincidência? Talvez a primeira, visto que a segunda simplesmente não existe.

O revés da questão é que se revela particularmente ingrato para o desenhador não poder ou conseguir imprimir o seu cunho pessoal ao personagem que “herda”. Sempre um presente envenenado. Talvez Pellejero dê uma de Jijé e consiga criar, em parceria com Canalès, um sidekick definitivo e memorável para Corto... Seria uma opção inteligente, apesar dos riscos. Mas, com Pratt e Corto, tudo são riscos.

Para mais, as histórias são de uma riqueza (multi)cultural quase assoberbante, pejadas de pormenores, referências, pistas e informação. Ora, incorporar isto numa estrutura narrativa fluida e cativante é uma tarefa hercúlea... A nova dupla tem como fardo e fado substituir um one-(super)man-show. Se fizermos um paralelismo com o que acontece na música, não existe coisa mais difícil (e ingrata) que substituir um cantautor.

É um ponto muito favorável ser uma dupla latino-europeia a suceder a Pratt. Acredito que parte da visão peculiar de Pratt se devia às suas origens ítalo-mediterrânicas.

Correndo o risco de tomar o papel de advogado do Diabo, vou basear a minha defesa dos novos autores num dos aspectos que nos (portugueses) faz empatizar/admirar mais Corto Maltese: o espírito livre e aventureiro de um marinheiro, sempre com o apelo do mar no coração.

Se el-rei D. Dinis não tivesse apostado(?) na plantação de um pinhal em Leiria, não haveria madeira suficiente para construir as caravelas que necessitávamos. Se todos fossemos Velhos do Restelo, nunca teríamos, sequer, saído do porto.

É certo que um Adamastor espera os novos autores, bem antes do Bojador... Caramba, ainda antes do porto! Sejamos realistas… Antes, até, da sementeira do pinhal! Esse Adamastor é o bem-amado legado de Pratt, em todo o seu esplendor e glória. A ele, junta-se ainda um Mostrengo: o discernimento colectivo dos fãs de Corto e Pratt. Para o bem e para o mal…

No que me toca, prefiro que Corto desfralde as velas, uma vez mais, a que nunca mais encete uma viagem. Nem que seja a derradeira. Se não me agradar, sempre posso recorrer ao magnífico e utilíssimo mecanismo mental, a que sacrifico a quase totalidade das sequelas cinematográficas, versões de músicas, todas as adaptações cinematográficas de histórias da Marvel e a hipótese do Ben Affleck envergar o manto do Batman: o doce Oblívio. Então, aí, essa viagem nunca existiu. O que, à primeira vista pode parecer uma mistura de indício de patologia mental com um complexo barato de deidade permite-me manter um equilíbrio são entre o mundo circundante e a minha enorme quota de fandom. Para mim, resulta…

Em suma, por muito que tentemos racionalizá-la e debatê-la: uma paixão é uma paixão. Visceral. Figadal. Quiçá, com pormenores que nem estão abertos a debate… Enfim, tudo aquilo que faz duma paixão a própria dita.

Resta, assim, saber se Corto navegará a norte do Círculo Polar Ártico ou a sul do Círculo Polar Antártico: as duas únicas zonas do globo onde é possível contemplar o sol da meia-noite... Acredito que o mais seguro seria a segunda hipótese, quiçá adoptando uma tónica lovecraftiana de Nas Montanhas da Loucura. Mais seguro. Não “mais original”. Eu apostaria nessa hipótese: já há demasiados riscos envolvidos. No entanto, ao que parece, Corto irá cruzar-se com o escritor Jack London - um personagem por si só –, com uma riqueza humana e aventureira ao nível de Twain e Hemingway. Ora, como London participou (e mais tarde escreveu sobre) na histórica corrida do ouro do Yukon – qual Tio Patinhas -, creio ser inequívoco que Canalèz nos vai remeter para a primeira hipótese. Não que seja mais original…

Encerro, portanto, rejeitando (a custo!) o papel de Velho do Restelo. Desejo, de coração, que os autores passem "ainda além da Taprobana". E que cantem os feitos e valor do Corto "se a tanto lhes ajudar engenho e arte"! Vão precisar... Muito.

 

Nota do autor: este texto encontra-se escrito na língua de Camões, incluindo espírito, citações, mitologia, lírica e epopeia. Não pode, de modo algum, obedecer a algo que o autor sacrificou ao Oblívio. Tal coisa – se porventura tivesse existido – seria agora, obviamente, desprovida de existência.